quarta-feira, 26 de agosto de 2009

PARTE IV

O dia estava chuvoso, meio cinza, meio branco. Tinha um bolo quentinho na mesa, desses que a gente faz pra comer em casa mesmo. O sofá vermelho contrastava com a claridade artificial que a casa fica em um dia um pouco escuro, o sol também tem o direito de tirar férias. O pai dela trabalhava bastante, mas era muito dedicado e atencioso. A moça que trabalhava em sua casa, Dona Luísa, era como uma avó para a Carolina.
Ela estava arrumando um dos quartos, enquanto a Carolina estava sentada em um banquinho de madeira, na sala, em frente à janela. As mãozinhas no vidro, parecendo incrédula de que tanta água pudesse escorrer e ela, com as mãos ali, não se molhava nem um pouquinho. E estava com aquele brilho intenso, os olhos tão expressivos que parecia até que estavam arregalados. A rua vazia, triste e a Carolina achando lindo como o céu mudava de cor e de jeito, até, quem sabe, de forma, daquela maneira tão magnificente.
A Dona Luísa estava mais que distraída com seus afazeres, já que a Carolina era quietinha e não se comportava sempre como uma menina de sete anos, era “tão madura aquela menininha, mas sem perder a inocência infantil e tão bonita...”, pensava ela.
Olhando pelo vidro da janela, a Carolina estava já em outro mundo através de seus pensamentos. Foi quando ela viu uma outra menininha que tinha mais ou menos a idade dela. A garotinha vestia trapos, estava suja, molhada, com frio e tinha um ar de indiferença por toda aquela situação. Fez um sinal para falar com a Carolina, que abriu a porta e sorriu com generosidade e uma boa porcentagem de pena. Não recebeu a resposta que queria. Logo ela saberia por quê.
Recebeu um daqueles pedidos de ajuda para com comida, roupas ou fosse o que fosse, mas que amenizasse o desconforto absurdo que é a realidade de um alguém que é considerado nada e ninguém pela sociedade em geral; convidou a menina pra entrar, como se aquilo fosse uma simples travessura de criança, com um sorriso de cúmplice no rosto; deu bolo e leite para a menina; quase a cativou por completo com todo aquele sorriso, simpatia e a confiança que demonstrou sentir pela garota. O nome dela era Milene.
A Milene odiava quando percebia que alguém sentia pena dela. A Carolina percebia rapidinho quando a pessoa usava um comportamento agressivo ou grosseiro como defesa,
embora ela mesma não soubesse disso. A Carolina demonstrava estar sentindo pena. A Milene queria se abrir com ela, mas pena ela não suportava. Explodiu.
- Ei, olha aqui, garota, você pode ter bolo todos os dias, cama, qualquer coisa. Mas não me olha como se eu fosse uma coitadinha não, você está pensando o que? Eu tenho nove anos, mas eu me viro sozinha desde sempre, eu não quero que sintam peninha nem nada. Isso aqui é humilhante, mas é como eu posso e eu odeio isso. Eu nunca devia ter te pedido nada. Puta que pariu, garota mimadinha, isso sim que você é. Não está acostumada a ver o que realmente tem lá fora. Vai se fuder, boneca Barbie idiota!
A Carolina só olhou, reconheceu por dentro dela mesma que tinha errado, pegou no braço da menina que já estava levantando para ir embora enfurecida (elas estavam embaixo da mesa), olhou nos olhos, pediu desculpas, ficou séria. Milene continuou ali embaixo, respirou. A Carolina sorriu. Elas continuaram comendo.
A Milene tinha se exaltado, então, Dona Luisa foi ver o que estava acontecendo e pegou as duas. Olhar sério, preocupado, indignado. Um “obrigada” silencioso e grato da Milene. Elas não se viram mais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário